Isto daria um roteiro

A cidade já viveu uma briga de tesouras que ficou na história

Muito antes da famosa novela “Tí-Tí-Tí” da TV Globo sobre a briga de dois costureiros, Porto Alegre viveu na real uma história semelhante.

Quem me contou esta história foi o costureiro Rui há muitos anos atrás e eu divido com vocês para comemorar um período da cidade onde glamour e a sofisticação pareciam tão populares quanto o pôr do sol no Guaíba.

Era normal na época desta história contada por ele -anos 1960, encontrar mulheres enluvadas olhando as vitrines da Casa Sloper, comprando enchapeladas na Casa Louro ou conferindo as novidades culturais da Livraria do Globo.

O centro de Porto Alegre era muito bem frequentado (e lindo) e andar pela rua da Praia depois de uma matiné no Cine Imperial ou Cine Guarany era um programa elegante.

Até o final dos anos 1950 os homens desfilavam de ternos com gravata e as mulheres se produziam para ir ao “centro”.

As melhores lojas se concentravam no quadrilátero de charme entre a rua Borges de Medeiros e a Rua do Rosário.

As vitrines mostravam a moda que vinha de São Paulo e do Rio de Janeiro onde as tendências nasciam.

Mas o que funcionava em termos de moda nesta época na cidade eram as modistas.

Todo bairro tinha uma.

As “clientes” recortavam roupas das revistas, compravam o tecido e “mandavam fazer a roupa” nas costureiras.

Existiam as costureiras que só executavam as encomendas e as que sugeriam o que estava na moda.

Foi neste cenário que rolou esta guerra das tesouras.

Mary Steigleder era uma destas costureiras chiques da cidade.

Pelo bom gosto e estilo de vida tinha o poder de influenciar suas clientes burguesas.

Em Porto Alegre era a figura dominante na moda.

Elegância incomparável, beleza clássica e muita aristocracia eram alguns dos predicados da modista destacados nas notas sociais.

Mary não foi uma estilista como conhecemos hoje, mas uma grande costureira que “recriava” os modelos legítimos de nomes prestigiados na época, sob inspiração parisiense.

Se mantinha atualizada viajando frequentemente para Paris (onde comprava produtos para vender em sua maison) e tinha entre suas amigas a Sra. Menna Fialla, da Casa Canadá do Rio de Janeiro, uma lenda da moda brasileira.

Sua estratégia de manutenção no poder, além da elegância indiscutível, era de estar presente nas colunas sociais dos jornais e revistas da época.

Um marketing pessoal que não era ainda comum.

A crônica social a elegeu como uma das “Dez Personalidades que fazem notícia no mundo feminino” por melhor representar a alta-roda gaúcha, pela elegância e bom gosto.

Figurou também como uma das “Dez mais elegantes do Brasil” na lista de Ibrahim Sued, o mais famoso dos colunistas sociais de todos os tempos.

Sua maison de moda era considerada uma das dez melhores do País.

O sonho de qualquer adolescente era debutar ou casar assessoradas por D. Mary.

Era o passaporte da sofisticação. 

Problemas no paraíso

Flavio Spohr tinha recém-chegado de Paris com todo o gás.

Nos anos 1960 ninguém no Rio Grande do Sul tinha cursado moda em Paris, muito menos se especializar em chapelaria e estilo no curso da Chambre Syndicale respirando o mesmo no oxigênio de Saint Laurent e Karl Lagerfeld.

Ao se fixar em Porto Alegre no centro da cidade o costureiro adotou o nome profissional de “Rui”, que já usava para assinar uma coluna no jornal de sua cidade.

Naquela época ser costureiro era mal visto e a troca do nome também era para não criar constrangimento para a sua família tradicional de Novo Hamburgo.

Rui trazia na bagagem a força dos jovens e da moda que estava mudando radicalmente na Cidade Luz.

Mas em Porto Alegre encontrou um cenário sombrio.

Na cidade da época era moda fazer roupas com madames.

Aportou em um espaço onde uma senhora muito bem relacionada, bem casada e bem-nascida influenciava o mercado de moda com braço de ferro.

Mary Steigleder apesar de não ser uma criadora, sabia vender estilo para suas clientes chiquérrimas.

Ela colocava as roupas na frente ou os chapéus na cabeça e era impossível não gostar, já que era tão bonita.

Ela tinha como madrinha a poderosa jornalista Gilda Marinho, editora de moda da influente “Revista do Globo” que vestida pela costureira a colocava no auge.

Gilda foi uma lenda na cidade e o que escrevia todos obedeciam.

Foi neste cenário adverso e com a tarefa de quebrar esta hegemonia que o costureiro Rui enfrentou uma Porto Alegre ainda conservadora e provinciana.

E como a Gilda estava no comando da mídia passou a ignora-lo ou desprezar o seu trabalho a cada edição da Revista do Globo.

Quando a convivência parecia insuportável a disputa ganhou um brilho inesperado.

No meio do babado Rui teve um lance de mestre e conseguiu ser contratado como colunista de moda em um jornal concorrente para contrapor as notícias da arquirrival e servir como um conselheiro de moda apoiado pela vivencia na capital da moda.

 Madame Dita Cuja

Era assim que Rui se referia ao nome da costureira.

Jamais citou o seu nome.

E a guerra das agulhas, saiu da mídia e começou a ganhar um viés mais agressivo nos alinhavos profissionais.

Quando Rui fechava uma encomenda, invariavelmente Gilda telefonava para alguém da família da cliente para invocar velhos laços de amizade e insinuar que a grife poderia não ser citada nas suas colunas, além de alfinetar o novo estilista na cidade.

Usava o seu prestigio para melar o negócio.

 Embate notável

O embate histórico aconteceu no primeiro desfile beneficente mostrando a coleção de chapéus do costureiro em um espaço elegante, cheio de mulheres alinhadas e bem-nascidas.

Um pouco antes do desfile começar um burburinho denunciou na plateia a chegada triunfal de Mary Steigleder, muito elegante e mega bem vestida com pessoas da família.

Climão no ar, mas o desfile de chapéus rolou impecável.

Após o show, enquanto Rui guardava os chapéus desfilados, Gilda Marinho invadiu os bastidores e o convidou a ir até a mesa de D. Mary, para receber os cumprimentos.

Rui na hora viu que se tratava de uma armadilha e levou junto alguns chapéus.

Ao chegar na mesa se iniciou um duelo de agulhas, cada um delimitando o terreno a tesoura e alfinetadas.

Mary o elogiou discretamente e comentou que os três últimos chapéus desfilados não tinham “aquele chique”, como se dizia na época. E que em Paris já não se usava mais aquele estilo de chapéus.

Só que ela não tinha sido informada que o desfile de chapéus reunia também o acervo que o costureiro trouxe de Paris e os três que ela se referiu eram assinados nada menos que Jean Barthet e Jaques Fath, os melhores em estilo da época e absolutamente modernos.

Rui então atacou triunfante.

“Pois eu sinto muito, mas madame acaba de criticar um chapéu da coleção atual de Jacques Fath, o mais prestigiado costureiro francês do momento! ”, exclamou vitorioso virando o chapéu que trazia nas mãos e mostrando a famosa etiqueta.

Foi uma gargalhada geral.

Mary imediatamente pulou da cadeira, pegou a bolsa, abriu caminho e se retirou furiosa.

Marido, filha, genro, irmã acompanharam em fila indiana.

Ela se sentiu ridicularizada. Exposta ao vexame e então ela jurou persegui-lo na sua carreira profissional decretando:

“ Você venceu esta batalha, mas enquanto eu for viva vai ter que enfrentar a minha guerra! ”, vociferou a modista.

Vingança na alta moda

No número seguinte da revista do Globo, após o desfile de chapéus de Rui, Gilda foi a luta.

Tentando revanche decretou na sua coluna da revista que “os chapéus haviam caído de moda” fazendo com que as gaúchas eliminassem o acessório, mesmo em dias gelados.

A notícia prejudicou as vendas de Rui imediatamente, mesmo falsa – já que os chapéus continuavam em uso em todo o mundo nos anos 1950 e 1960.

A desavença encorajou ao Rui a ampliar suas criações para roupas.

Junto a esposa Doris desenvolveu as técnicas de modelagem aprendidas em Paris e começou um serviço de alta-Moda inédito na cidade, já que desenhava as roupas sugeridas para as clientes e ainda trazia um sopro do clima europeu para dentro de sua maison.

Logo a marca Rui conseguiu furar o bloqueio e impor suas criações para a parcela mais sofisticada da cidade.

Sua fama atingiu o Brasil depois do lindo vestido criado para a Miss Universo, Ieda Maria Vargas, os uniformes desenhados para a Varig e participações nos desfiles da Rhodia.

Rui também lançou modelos famosas como Lilian Lemmertz e Lucia Curia Moreira Salles, além de ter rabiscado milhares de roupas exclusivas, luxuosas, eternas e criativas.

Mary Steigleder continuou fazendo seus vestidos deslumbrantes e enfeitando a cidade com sua maneira chique de ser e a aparência de rainha.

Porto Alegre já tinha crescido e oferecia oportunidade para os dois brilharem cada um na sua arte.

E a moda ganhou mais uma história.

 

 

Xico Gonçalves
Xico Gonçalves
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8 comentários

  1. linda a história,conheci o Rui e a Mary através de vestidos de uma família tradicional de Porto Alegre., parabéns não conhecia esta história mas sempre admirei os dois.

  2. Linda história. Ruy foi um dos grande estilista de Porto Alegre e foi inspiração para muitos que vive da moda. Este ano minha filha se forma pela Unisinos em Designer de Moda, inclusive é uma de suas admiradora, e o trabalho de conclusão dela será sobre “chapéu” é exatamente uma homenagem ao Ruy. Até antes de Ruy falecer Ela esteve em contato com Ele para saber tudo sobre chapéus e moda. Inclusive ganhou dois chapéus do Ruy.

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